sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Utilidade pública I

Na boa, me desculpem a frieza, mas alguém aí já perdeu mãe? É assim, mesmo? A gente tem vontade de bater com a cabeça na parede, amargando toda a culpa que a gente tem por não ter dito tudo o que queria pra ela e, ao contrário, por ter dito coisas horríveis, notadamente, na adolescência? É isso, mesmo? A gente fica passando a vida inteira na cabeça, todos os dias, o dia inteiro? A gente fica achando que a dor não vai passar nunca? Fica lembrando das cenas da própria morte dela em si e do enterro o tempo inteiro?

Nem sei se contei aqui, mas, no meu caso, quando cheguei no hospital, ela tava "dormindo", quietinha, com meu pai e umas amigas e parentes, comemorando o fato de ela ter passado uma manhã ótima, toda feliz, me esperando, todo mundo certo de que ela teria alta naquele dia, a tal da Visita da Saúde, como me disseram depois. As últimas semanas foram infernais pro meu pai (eu estava aqui no Rio, só ia nos fins de semana), ela gritando o tempo inteiro, dia e noite, em estado de demência, que eu presenciei algumas vezes, chamando por parentes próximos mortos, lembrando de coisas de infância, e por aí vai.

Aí, foi medicada, "dormiu". Eu cheguei, era um sábado de tarde, lá por volta das duas e meia da tarde, beijei o povo todo e fui, como de costume, dar beijinho na testa dela. Pra perceber que o sono não era sono. Nem era porque ela estava fria, não. Ela já andava fria, uma coisa de pressão, circulação, e tal. Era só porque ela não se mexia de jeito nenhum. Cheguei a abaixar, pra ter os olhos no mesmo nível da barriguinha dela, pra ver se não mexia mesmo, como eu já desconfiava. Confirmei e tremi igual a uma vara verde, como ela mesma diria. Ah, sim, sem falar na assustadora paz e tranquilidade que ela trazia no rosto, coisa que não via nela há meses.

Chamei a empregada, boa Penha, e pedi, discretamente, que ela chamasse a enfermeira. Não estava bem certa ainda, não queria apavorar meu pai à toa, negação total. O único que percebeu a movimentação, eu soube depois, foi meu primo querido, que lia nos meus olhos o que estava acontecendo e ficou parado, esperando o que ia acontecer, discreto também, em choque total também, aliás: Tia Nilza, veia de guerra, não pode morrer assim, de forma tão ridícula.

Noves fora zero, a repórter aqui fez o favor de insistir em ver toda a equipe de médicos tentando reanimar a paciente, a despeito de um médico tentar me aconselhar a sair do quarto. Não saí, tinha que ver se eles iam trabalhar direito, ora, vi tudo e ainda fiz o favor de ouvir aquela merda de medidor de batimentos cardíacos emitir aquele som de filme, "piiiiiiiiiiiiiiii...", com o tracinho no visor, o que é igual a nenhuma vida mais. Em algum momento, ouvi uma enfermeira dizer "liga pra Dra. Fulana de Tal", que era a médica pessoal de minha mãe - estamos falando de uma cidade do interior de Minas. O médico, que chegou correndo, quando a Penha deu o sinal de que algo de muito errado estava acontecendo, mandou na fuça (eu não devia estar ali, certo?) "chamar pra quê? Só se for pra avisar..."

Tem mais. Quando tudo já estava sabido e resolvido, meu pai na funerária em frente ao hospital (é uma gente prática, sabe?), vi que uma menina e sua, aparentemente, mãe, se esticavam pra espionar por uma janela aberta, do prédio do hospital, que dava pro pátio, onde todos nós, os famosos amigos e parentes, estavam. Era o necrotério, onde a única paciente morta do dia estava, esperando o babado da funerária. Estavam, assim, espiando um defunto novo. Parti pra dentro, a despeito dos pedidos dos parentes, algo como "peraí, Rozane", "vai lá, não", "segura ela"...

Ninguém conseguiu se mexer, eu fui, literalmente, carregando minha própria mochila e meu laptop, num ombro, a mochila com coisas de minha mãe no outro. As fofas já tinham saído da janela e estavam indo embora. "Que que tem lá que vocês tão olhando tanto?" Silêncio. Insisti. A mulher balbuciou "é um cadáver". "Não, não é um cadáver, é a minha mãe e eu exijo respeito." "Desculpa." Na boa, a cara de pavor e de culpa da mulher resolveu tudo e (ela nem sabe a sorte que teve) eu nem enfiei, literalmente, a mão na fuça dela, que era, inclusive, o que eu pretendia, juro. Foi isso. Resumindo, foi isso.

Ah, sim, no enterro, sei lá como descrever. Em algum momento da madrugada, só eu, uns primos e boa Penha (meu pai, a gente achou melhor que ele fosse dormir em casa e ele concordou, graças a Deus), um dos primos começou a contar piadas. E a outra empregada começou a se benzer porque, afinal de contas, tratava-se de um desrespeito. Cena tosca total. Na boa, por que tem sempre alguém que conta piadas em enterro? Isso é uma verdade absoluta. Pior que isso só eu morrer de rir das piadas do paiaço e poder jurar que minha mãe tava rindo também, toda bonitinha no caixão, enfeitado com umas flores lindas, cujo cheiro não quero sentir nunca mais na vida, embora ainda o tenha no nariz, até hoje; ela, com um terço nas mãos, o mesmo que eu lembrei de tirar da cabeceira da cama deles, quando estávamos todos saindo pro cemitério. Perguntei ao meu pai se podia deixar ela ser enterrada com o tal do terço, ateia mais ou menos que sou. "Claro, minha filha."

A certa altura, no cemitério, meu pai, paiaço de sempre, culpado pelo meu senso de humor estranho, aliás, lembra que a pressão dele não andava nada bem. A gente, eu e meus primos, começou a ladainha de sempre, falando pra ele se cuidar, agora, mais do que nunca. Resposta: "Quem sabe eu não morro logo e aproveito a viagem? Já tô aqui, mesmo."

3 comentários:

monica disse...

Li todas 'Utilidade Pública'. Boas de doer.
Mônica

ROZANE MONTEIRO disse...

brigadim, frô, brigadim. tô purgando, tô purgando.

Talita Braga disse...

Falar ajuda,né?!
Fazer piada da desgraça é a solução....ninguém me entendia quando eu resolvia dar uma sacaneada no fato da minha mãe ter empacotado...mas no fundo só mesmo fazendo piada é que dá pra diminuir a dor, fazer parecer meio ridícula e caber dentro da gente...sem isso eu nunca que ia conseguir segurar....
Mulher, força na peruca que a parada é dura!
Beijos!