sábado, 28 de março de 2009

Shirley Temple do Mississippi no barquinho do Seu Eike

Foi assim:

Eu e minha amiga saímos lá pelas sete da noite do escritório. Ovacionadas pela turba amiga. Elogiadas pelo esmero no visual. No ar, um desejo sincero da coletividade de que tivéssemos uma noite bacana no barquinho do Seu Eike, tal de Pink Fleet.

Um exagerado reparou que eu tava com creminho chique pra cachinhos no cabelo e passou a me chamar de Shirley Temple. Emendei um "Shirley Temple do Mississippi, né?", convencida que estava de que não havia nenhuma sacanagem no comentário, mas apenas uma metáfora carinhosa mesmo, autoestima elevadíssima no corpinho moreno e suado a caminho do mar. Sei lá, achei superfofo ele olhar pra minha fuça e lembrar da sapateadora mirim louríssima da Hollywood dos anos 20 ou 30 ou 40... (preguiça enorme de ir no Google agora).

Também emendei o que, ao que parece, amaldiçoou a noite: "Cara, na boa, já pensou se a gente chega lá, e a noite pra convidados é um bingo pra Terceira Idade?" Não, não era. Era coisa muito pior.

Mas vamos ao relato mais ou menos frio dos fatos.

O barquinho, de longe, parece bacana. E é. O barco. E só o barco, que é, justiça seja feita, superbem decorado, um ambiente bem bacana, roteiro perfeito. Tudo pra dar certo. Mas só se o Seu Eike tivesse alguma intenção de se preocupar com a clientela, claro.

Enfim, assim que adentramos o gramado, decidimos ficar no segundo andar, do lado de fora, de fuça pro ventinho da Baía, fumando à vontade. Conversa vai, conversa vem, decidimos chutar o balde, pedir duas Cerpas e meter no cartão os R$ 65,00 (por cabeça) do buffet, que incluía, segundo o site do barquinho, um cardápio es-pe-ta-cu-lar. Nas fotos do site, é claro. Não, não incluía as Cerpas. Mas já sabíamos.

Garçom simpático traz a cerveja, eu vou, de infantaria, reconhecer o terreno no andar abaixo do convés, onde é o restaurante do barquinho. Pra pegar umas entradinhas, uns beliscos, esses, sim, incluídos no buffet. A amiga ficou pra gente não perder a mesa.

- Cê gosta de camarão, não gosta? - perguntei pra outra índia que me acompanhava no programa típico das populações nativas das Américas.

- Adoro.

Fui, certa de que voltaria com quitutes legais, refinadinhos. Antes, claro, parei um outro garçom pra me explicar como funcionava aquela parada de registrar o consumo nos cartões magnéticos que tinham dado pra gente, que sempre fui moça honesta.

- O buffet já tá registrado aí.

- Como assim? Quer dizer que, mesmo que a gente não coma nada, tem que pagar o buffet?

- Isso.

Achei esquisitíssimo, mas entubei. A gente já tinha decidido chutar o balde mesmo.

Até que fui olhar a mesa de buffet de perto. Sabe aquela massa que a gente faz com creme de leite, deixa esfriar, e o creme vai talhando? Sabe aquela massa com frutos do mar que parece que os principais personagens fugiram convés afora e se mandaram de volta pra casa? Sabe aquela salada de camarão, da qual só sobraram as alfaces e os complementos, só forrando o fundo da travessa? Sem falar que o tal do chef holandês, formado pela escola francesa Cordon Bleu, teve a capacidade de fazer uma salada de penne com atum que não há de ser melhor do que aquela que a gente faz quando tá com preguiça de cozinhar.

Fui desanimando, mas lembrei do garçom que tinha me dito que o buffet já tava nos cartõezinhos magnéticos da gente. Ato contínuo, parti pras entradinhas, que eram, afinal de contas, minha missão e estavam, ó, que legal, no meio da mesa, depois dos pratos principais, antes das sobremesas. Deve ser a escola francesa, sei lá.

Nas cestas de pães variados, só uns poucos croissants. Os outros já tinham acabado, e ninguém se coçava pra repor. Também catei uns tomatinhos recheados com um creme que não identifiquei e umas bolinhas de mussarela de búfala com tomate seco. E uns queijos. Ah, também catei umas pastinhas (berinjela, truta e frango com curry), o que, eu podia jurar, deveriam ser as melhores coisas dali, embora tivesse a certeza de que qualquer ser com mais de dois neurônios e certo jeito pra cozinha seria capaz de produzir as tais.

Voltei. Em menos de meia hora, o pouco pão acabou, e minha parceira do programão desceu pra pegar mais. Deu mais sorte, voltou com pãezinhos variados, daqueles que se compra fácil em qualquer padaria do Catete. Mas voltou passada com a mesa que viu, ainda mais arrasada (a mesa) pelo movimento de viajantes, pratos ainda mais desarrumados, quase vazios.

Contei a história do garçom, e achamos que seria melhor comer qualquer coisa do que sair dali sem comer nada. E toma pão no bucho, que aquela comida não valia nem a descida pro restaurante.

No microfone, uma mocinha contava em português e no que ela achava que era inglês a história de todos os pontos históricos e turísticos no entorno da Baía, no Rio e em Niterói. Na boa, na volta, depois de duas horas da ladainha, quando ela ainda contava a história da Praça XV, o barquinho do Seu Eike já quase atracando na Marina da Glória de novo, a vontade era a de enfiar a mão na fuça da mané-crente-que-é-bilíngue. Tá, vá lá: passar embaixo da Ponte Rio-Niterói e passar pertinho da Ilha Fiscal foi bem bacana.

A segunda dupla de cervejas levou meia hora (sem sacanagem) pra chegar do bar, que ficava a muito menos de 10 metros da nossa mesa - não, eu não sei calcular quanto seria em "pés". Já não era mais o garçom simpático que nos recebeu, mas o mané que me informou que o buffet era compulsório. Fato é que as duas cervejas só vieram quando chamei o garçom fofo, o primeiro, e ameacei, muito docemente, ir eu mesma lá no bar pegar.

Fato é que percebemos que o buffet não devia ser compulsório coisa nenhuma. Tinha um monte de gente só bebendo ou não consumindo rigorosamente nada. No grupo dos que não consumiam nada, os olhinhos brilhavam, casaizinhos apaixonados tiravam fotos um do outro, duas mocinhas quase elegantes pediam pra que tirassem fotos das duas juntas num sofá perto da gente - sinceramente, até agora, não sei como as duas não deram com a cabeça uma na outra quando, juntíssimas no sofá, deram aquela virada pra jogar o cabelo pro lado; deve ser a prática, sei lá, uma coisa nado sincronizado. Na verdade, as duas pediram pra que eu tirasse a foto, mas, de tanta raiva do Seu Eike, acabei fazendo uma foto de merda, e as fofas apelaram, depois, prum garçom, que, devo admitir, fez uma foto imensamente melhor do que a minha. Não, não me orgulho.

E toma Baía de Guanabara na fuça, eu e minha amiga, mortas de tédio, penduradas na gradinha que nos impedia de pular na água ou de empurrar o garçom anta, na falta de uma prancha pro mané ser humilhado publicamente, caminhando de olhos vendados até virar comida de tubarão. Ih, me empolguei, foi mal.

Continuando:

Quando, finalmente, o passeio chegou uma meia hora do fim, minha amiga encheu o saco e decidiu descer pra pagar tudo no cartão dela, pra gente acertar mês que vem. Seriam, pelas nossas contas, uns 160 reais. Isso, porque a gente não pagou o passeio, que veio parar nas nossas humildes mãos graças a um sorteio no escritório. Se tivessémos que pagar, seriam mais 160 paus. Claro que isso não seria uma possibilidade: só fomos, mesmo, porque o passeio era de graça. Informei o preço do passeio só a título de curiosidade.

- Se eu demorar a voltar, é porque tô quebrando tudo lá embaixo - me alertou a fofa, moça fina prestes a perder as estribeiras e partir pra dentro do primeiro que pisasse em seus calos chiques.

Aí, fiquei ali, sozinha, já bem legal de Baía de Guanabara, doida pra desabafar, e o garçom bacana encostou pra saber se a gente queria mais alguma coisa.

- Não, brigada, a gente desistiu. Minha amiga já foi até encerrar a conta.

- A senhora me desculpe, etc, etc, etc.

- Agora, vem cá, me explica uma coisa. É verdade que o buffet já vem incluído no cartão magnético?

- Hein? Claro que não. É opcional. Quem foi que falou isso pra senhora?

Até pensei em apontar a anta do garçom que falou essa loucura e armar o barraco de vez, mas acabei falando que a gente já tinha decidido comer e que nem tinha certeza de que tinha sido ele mesmo. Tinha, sim, mas fui acometida de uma profunda misericórdia. Coisa que foi, aliás, imediatamente, reconhecida pelos céus.

Quando descobri que, por conta da confusão da anta, o garçom legal acabou não registrando o buffet nos nossos cartões, começou a me ocorrer a possibilidade de ter ocorrido o que de fato ocorreu. O sorriso na lata da minha parceira de roubada na volta pra mesa e a nota que ela trazia nas mãos confirmaram:

- Cê não vai acreditar no que aconteceu lá no caixa.

- Vou, sim.

Resultado: nossos dois "jantares" de 65 paus cada, mais quatro Cerpas, saíram por exatos 30 reais e 80 centavos, pagos em dinheiro, que a gente não tava ali pra ser mais esculhambada. Como diria o Gene Kelly, no início de "Cantando na Chuva": "Dignity, always dignity". Acabamos só pagando as quatro cervejas, e minha metade será devidamente reposta à amiga no almoço que eu já prometi pagar num restaurantezinho bacana no Centro do Rio na segunda-feira. Tem mais: ainda por conta da imensa confusão que foi pedir as duas últimas cervejas, os caras acabaram registrando duas a mais, fato que foi enfaticamente rechaçado por minha companheira de roubada na hora de pagar a conta, do alto de sua indignação, segundo seu próprio relato. Não, ela não quebrou tudo. Foi só, assim, uma figura de linguagem.

Devo informar que, como não houve nenhum registro eletrônico do buffet que consumimos por conta da confusão do garçom anta, não tem jeito de cobrar dos funcionários o rombo de 130 reais que deixamos no patrimônio do megaempresário.

Também devo informar que, antes de o barquinho do Seu Eike atracar, já tinha uma multidão na fila da única saída, louca pra sair daquele lugar, e minha amiga reecontrou um casal com quem tinha conversado durante sua missão busca-pão no restaurante e que também babava de raiva. Manja fim de jogo no Maracanã, quando o time já se danou todo, e a galera vai saindo antes do apito final, bandeirinha enrolada, alma aos trapos? Pois é. A diferença é que o Maraca, que eu saiba, não flutua Baía de Guanabara afora, e a saída dos desgraçados não depende dum raio dum cais.

Ato contínuo, puxamos conversa com uma mulher pra saber se ela também tava puta. Não estava. Estava, aliás, suuuuuperfeliz porque tinha feito um jantar com amigos no restaurane do barquinho do Seu Eike e tinha dado tudo suuuuuuupercerto, com o maître amigo paparicando. Juro que me ocorreu dizer "também, sendo amiga do maître, é mole, né, ô, vaca". Mas, sei lá, achei que ia pegar mal. Eu tava fina demais, vestidinho de seda esvoaçante e cachinhos com creminho ao vento da Baía. Ia acabar saindo do personagem.

Quanto ao calote, cá pra nós, a gente penou horrores implorando pra ser atendida; sem coragem de cair de boca num buffet de terceira, alimentada por pão de quinta e pastinhas mixurucas; desconfiando de que Seu Eike deve ter algum motivo pouco nobre pra manter um empreendimento daquele às moscas, só perdendo dinheiro convidando a turba ignara pra passeio de graça, tadinho. Estamos, portanto, com a consciência em absoluto estado de tranquilidade, numa leveza de virgem que não fuma, nem bebe. E pronto.

P.S.: Boto aqui o link pra página do site do barquinho do Seu Eike que mostra o buffet só pra vocês terem ideia do peixe que eles vendem e que, definitivamente, não entregam. Que picaretagem, meu Deus!

http://www.pinkfleet.com.br/buffetlight.htm

4 comentários:

mirtes disse...

e a shirley temple dançou... (rs)

ROZANE MONTEIRO disse...

e nem tava no Mississippi! humpf.

Unknown disse...

Pode botar a mão na cabeça e gritar: Ai Meu Deus Como Eu Pude?

ROZANE MONTEIRO disse...

a gente não para de repetir isso, Dil!!!!!